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Quem tem olhos para ver veja!

“Se podes olhar vê. Se podes ver repara” é a epigrafe do livro de José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira, que para mim é uma parábola contundente da pós-modernidade, uma metáfora pertinente dos indivíduos que perderam a visão.
O livro desenha o estado deplorável em que chega uma sociedade quando um tipo de cegueira toma conta do povo: a luta pela sobrevivência, o estado de bicho, o egoísmo, a intolerância, a exclusão. Trata da opressão que sofrem aqueles que cegaram daqueles ainda por cegar; da hierarquia entre os cegos construída pela lei do mais forte e o pavor que separa os cegos dos não cegos!
Foi impossível ler o livro e não ver o retrato dos nossos dias: gente que se esbarra, mas não se toca; vê, mas não repara; pessoas que caminham num breu em plena luz do dia preocupadas apenas com suas vaidades e enfeitiçadas pela cantilena “cada um por si e Deus por todos!”.
Penso que nossa sociedade cegou e, a não ser que um tipo de colírio nos salve, estamos fadados à decadência!
Na cura de um cego de nascença no Evangelho de João capítulo 9, Jesus trata de pelo menos três cegueiras: a cegueira física, a cegueira racionalista e a cegueira institucional.
Esse capítulo é um convite à responsabilidade de vermos. Nós nos tornamos responsáveis por aquilo que vemos. O que enxergamos quando vemos? O que vibra em nosso corpo quando vemos o que vemos? Minha visão provoca alguma ação?
Assim começa o nosso texto: “Ao passar viu ele [Jesus] um cego de nascença”.
Jesus tinha olhos que viam, olhos que reparavam, que se compadeciam. Jesus viu com o coração aquele homem, teve misericórdia e mudou a sua sorte: curou-lhe da cegueira física e também da espiritual (vv. 35-38)!
Mas enquanto Jesus toma para si a responsabilidade do que viu, seus discípulos querem “fazer teologia”; enquanto Jesus responde à imagem do cego moribundo, seus pupilos perguntam “... quem pecou: este homem ou seus pais, para que nascesse cego?” (v.2).
A razão por vezes nos torna cegos para aquilo que é visível, imanente, para aquilo que é carne. É muito comum em nossos dias “a luz da verdade” ofuscar a luz da práxis, o que produz brilhantes pensadores com uma prática mediocremente opaca, sem o mínimo compromisso com o que vêem a um palmo do nariz! Ótimos discursos, teses, sermões e textos, mas vida atrofiada, sem impacto e engajamento.
Vale lembrar aqui o “fingimento” de Fernando Pessoa:

Eu tenho idéias e razões,
Conheço a cor dos argumentos
E nunca chego aos corações.
[1]

Os miseráveis não precisam ser objetos de estudo, temas de discussões, figuras folclóricas. Eles necessitam serem vistos, amados e assistidos.
Nessa passagem os discípulos de Jesus tipificam essa luz – “a glória da verdade!”
Os discípulos estão cegos. Sofrem de “miopia da lógica” que lhes torna insensíveis cegos à “luz do dia”.
Jesus desperta os discípulos para a responsabilidade de verem: “Enquanto é dia precisamos realizar a obra daquele que me enviou...” (v.4). E lhes põe o foco na verdadeira luz: “... sou a luz do mundo” (v.5).
A luz não está meramente na lógica, no conhecimento, na razão, na ciência; a luz é gente que vê e se compadece e age. A luz é o próprio Cristo!
A maneira de o Mestre tratar as cegueiras é a mais tosca possível, despida de toda sofisticação, mas também a mais humana: terra com saliva (v.6) – uma técnica bem primitiva que nos remete ao ato da criação do homem (Gn 2.7)!
Cristo não faz um discurso rebuscado, um “ensaio sobre a cegueira”, não “toca trombetas” para divulgar seu poder e ainda dá ao cego a possibilidade de cooperar no milagre, tornando-o co-agende da ação ao invés de objeto de estudo: “Vá e lave-se no tanque de Siloé” (v.7).
Jesus enxerga ainda outra cegueira: a cegueira institucional (vv.30-14).
Os fariseus ficam irados porque aquele homem ousou fazer uma cura no sábado, dia sagrado para os judeus, separado apenas para as práticas religiosas. (Como se a compaixão não fosse sagrada!).
Esta talvez seja a cegueira mais estúpida, pois pretende escrever a agenda de Deus, regular seu amor e domesticar o Eterno: “Esse homem [Jesus] não é de Deus, pois não guarda o sábado” (v. 16).
Para este tipo de cego é inadmissível a ação de Deus fora de sua cartilha, longe do seu arraial. É impossível ao dogmático que o amor de Deus transcenda a Lei, muito menos que seja ele próprio o agente transformador quando a ação não tem o seu vocabulário, o seu clichê, o seu jargão.
É fácil ouvir a voz de Deus na música Paciência de Lenine convidando à tolerância e a andar na contra mão deste século; enxergar na música Caçador de Mim de Milton Nascimento que existe uma Caça Maior e no conto magistral Um Artista da Fome de Franz Kafka ver além do homem da arte de fazer jejum, ver uma denúncia da compulsão moderna:

Porque eu não pude encontrar o alimento que me agrada. Se eu o tivesse encontrado, pode acreditar, não teria feito nenhum alarde e me empanturrado como você e todo mundo.
[2]

Mas o indivíduo do gueto religioso não tem olhos para além das paredes institucionais. Devia seguir o exemplo do apóstolo Paulo que não tinha esse pudor e citou poetas não cristãos como bem lembrou o Pr. Ricardo Gondim (At.17.28):

(...) “pois nele vivemos, nos movemos e existimos”, como disseram alguns dos poetas de vocês: “Também somos descendência dele”.

Os óculos do “teólogo fechado” deixam uma cara austera, que não sorri, que está sempre azeda. Essa cegueira não permite a dança, a celebração, o goza, pois está sempre preocupada em cumprir as regras da instituição e em defender as teses da teologia que se entende ser de Deus!
Um exemplo típico está na parábola do filho pródigo (Lc 15.11ss).
Depois de andar erradio pelas vielas do mundo e da alma o filho pródigo volta para casa e recebe o perdão, o abraço e o beijo do Pai; também vestimentas, sandálias, anel e um banquete com muita festa. Seu irmão ao chegar de suas “obrigações” fica de bico porque nunca houve uma festa pontual para ele. Em suas tarefas pesadas o irmão mais velho se esqueceu de desfrutar de tudo o que também era dele...
O legalismo nos impede de ver que a graça de Deus é autônoma e flui apesar de nós; a “teologia na bitola” paralisa as nossas pernas para os pródigos que foram e cruza os nossos braços diante dos pródigos que voltaram.
Enquanto o racionalismo e o dogma fascinarem os nossos olhos seremos cegos indiferentes à necessidade do outro e incapazes do abraço apaixonado!
O chamado de Deus para nós é que sejamos seus parceiros de visão que mantêm o coração, o entendimento e a teologia abertos; que nos tornemos responsáveis por aquilo que vemos “... restaurando os contritos de coração, proclamando liberdade aos cativos e a abertura de prisão aos presos” (Is 61.1).
Quiçá a frase “se creres verás a glória de Deus” (Jo 11.40) nos inspire não a uma fé tola e passiva que rasga o verbo decretando absurdos, mas uma fé ativa, engajada que move nossos pés e mãos para trabalharmos no desembaçar da Imago Dei timbrada nos homens; uma fé que antevê no homem decaído a glória de Deus, que enxergue no barro uma criatura e no caos um jardim!
Nosso texto termina com uma mudança de cenário: o cego viu e o que via cegou. Para o cego Jesus diz “Você já o tem visto [Filho do Homem]” (v.37) e para os fariseus diz: “... a fim de que os cegos vejam e os que vêem se tornem cegos”.(v. 39).
Quem tem olhos para ver veja!
Um abraço,

Márcio Cardoso
[1] PESSOA, F. Poesias inéditas. Lisboa: Edições Ática.
[2] Kafka, F. Um artista da fome/ a construção. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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