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UM ANO COM MAIS VALSAS E MENOS PRESSA


“Enquanto o tempo acelera e pede pressa

Eu me recuso, faça hora, vou na valsa

A vida é tão rara!”

(Paciência, de Lenine/ Dudu Falcão)

Deixei para comprar o presente de natal da minha esposa somente na semana da festa. Ingenuamente fui procurar num shopping! Como todos sabem, nessa época do ano o comércio está fervendo de gente: jovens de férias, crianças para verem os enfeites natalinos, turistas e gente que deixou suas compras para última hora! Encontrei o que eu queria até com certa rapidez, e junto à compra uma constatação que me fez rir: depois do presente em mãos eu estava andando a uns 15 km/h seguindo o frenesi de todos os transeuntes!

Então eu me perguntei: “por que estou andando tão rápido? Já comprei o presente, eu tenho mais de 2 horas para o próximo compromisso e o local do compromisso fica apenas a 7 km daqui!” Na mesma hora eu reduzi a marcha até quase arrastar o sapato no chão (só de vingança!), neguei-me a ser carregado por aquele fluxo de gente e pensei “que tal uma tapioca com um cafezinho expresso?!”. No meio do Templo do Comércio levantei uma Catedral do Prazer...

O homem moderno está sempre atrasado (mesmo que não esteja!); está sempre com uma pendência com o tempo; sempre refém do tempo, seja por causa da sua ambição ou suas atrapalhadas; vive a correr atrás do tempo para ganhar tempo. Surge uma pergunta que não quer calar: ganhar tempo para quê?

O homem moderno não sabe o que fazer com o tempo que sobra (quando sobra!). Ele quer ganhar tempo para correr mais, acumular tempo para em seguida perder tempo; quer ganhar tempo para ficar ansioso. O homem não tem sossego para saborear o tempo; ele tem pavor do silêncio, da quietude, da pausa, do ócio, do tempo “inútil”.

O homem nunca está onde está; ele está sempre no próximo local do seu compromisso; ele está sempre debaixo da tirania do “tenho que...”; a qualidade de tempo do homem é uma piada! Ele está, mas não está. Ele está na mesa tomando seu café da manhã, mas não sente os sabores e aromas; está com seus filhos, mas está na reunião seguinte ou no jogo de futebol; está com sua esposa num restaurante, mas está pensando, entre uma garfada e outra, como vai pagar aquela fatura; está com seu Deus em oração, mas está (em nome de Deus!) agitando a Deus para trabalhar a seu favor num negócio qualquer!

O ser humano é assim escravo do tempo. A não ser que ele reaja, resista ao andamento acelerado e se arrisque numa valsa, o ser humano está fadado à insignificância, ao tédio, a canseira, ao enfado, à loucura, ao dissabor...

E lembro-me do sábio Eclesiastes...

“para quem trabalho eu, se nego à minha alma os bens da vida?”

“Nada há melhor para o homem do que comer, beber e fazer que a sua alma goze o bem do seu trabalho. No entanto, vi também que isto vem da mão de Deus, pois separado deste, quem pode comer ou quem pode alegrar-se?”

E lembro-me do Criador que descansou ao final da criação só para responder à Beleza: “é bom, muito bom!”

E lembro-me de Jesus de Nazaré que apesar de uma demanda grande contemplava pássaros e lírios, caminhava na praia, comia e bebia com pecadores, que para prolongar uma festa de casamento transformou água em vinho!

Qual foi a última vez que você se permitiu ficar “inútil”, sem ter que “funcionar” e não sentiu culpa, medo, vergonha? Qual foi a última vez que você se entregou a “inutilidade” dos prazeres e não se sentiu cobrado por alguma coisa ou alguém?

Quando foi a última vez que você parou para ouvir música? Não ouvir apenas como um fundo musical para varrer a casa, lavar a louça (que também é bom!), mas sentou, deitou e ficou à mercê dos sons...

Qual a última vez que leu algumas páginas de um livro de poesia em silêncio e ficou à mercê da criatividade do autor?

Quando foi a última vez que você percebeu o cheiro de um café ou a textura de um vinho? Quando foi a última vez que sentou com a família para uma refeição? Usufruiu de sua poltrona, travesseiro ou curtiu os seus brinquedos preferidos e ficou à mercê da felicidade?

Qual foi a última vez que você se aquietou em oração, sem pressa, sem segundas intenções e ficou a mercê do amor de Deus?

Na correria do ano ou final do ano de 2010 ouça a voz de Deus:

Meu filho, desacelera! Para que correr tanto? Senta um pouco, puxa uma cadeira, coma uma tapioca com café e desfrute a vida! Silencie e sinta a rotação da Terra que não depende da sua correria. Senta um pouco, filho, ouça o seu respirar e conte os seus dias: lamente o que não foi, mas celebre o que foi! Não deixe sua vida perder significado no trânsito vão deste século. Permita-se um “sábado” seja em que dia for, descanse e goze a vida juntos dos seus e do seu Criador!

Desejo a todos um 2011 significativo e me despeço com o singelo poema “Exausto”, de Adélia Prado:

Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.

Márcio Cardoso

Comentários

azaleia cout disse…
Lindo texto! Eu sorri ao ler... Senti alegria por também querer desacelerar... Me alegrei por não estar só! E quão de Deus tem essas coisas simples!!!!Solitude!!!!! Eu também quero " a graça de um estado"... O estado de ser feliz!!!! Parabéns pela sensibilidd. Vem do Pai!
azaleia cout disse…
Este comentário foi removido pelo autor.

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